Zemba

Como descrever Zemba ?, como um quartel normal, com população cível, lojas com artigos diversos etc ?, não, antes pelo contrário, Zemba é aquilo que eu costumo dizer aos meus amigos, era uma autêntica prisão, um campo de concentração, ou pior ainda, senão vejamos:

Dista cerca de 20 quilómetros de Santa Eulália, só sendo possível lá chegar por uma picada cheia de curvas e contracurvas, muito estreita, os camiões tinham dificuldades em caber na estrada, locais havia em que a floresta quase engolia a estrada, como já referi, era fácil o guerrilheiro apanhar-nos à mão.

O quartel era todo ele rodeado por arame farpada, a partir do qual era proibido sair, o capim em redor desse arame tinha de estar constantemente a ser cortado, caso contrário perdia-se a vista ao exterior, todos os edifícios, excepto a capela, eram em madeira, tipo quartéis que se vem nos filmes da segunda grande guerra, os tectos eram de chapa, a água provinha de um ribeiro que possua um charco tipo poço, que distava cerca de dois quilómetros, e que obriga a deslocação de um jipe com uma patrulha todos os dias para colocar o motor a trabalhar, essa tarefa normalmente competia ao piquete de serviço, e a água corria directamente para depósitos existentes no quartel, no caso da messe de Sargentos, eram quatro ou cinco bidões, a sua cor era barrenta e apenas servia para tomarmos banho, pois era imprópria para beber, durante os doze meses que lá estive, apenas bebi cerveja e sumos.

A electricidade, apenas á noite, provinha de um gerador e servia para alimentar as lâmpadas existentes junto à vedação, nomeadamente junto às torres de vigia.


Como se pode verificar pela imagem, todo o quartel estava rodeado de mata tipo tropical, principalmente do lado de campo de futebol onde existia um ribeiro, onde era impossível ir, dada a concentração da vegetação, desse mesmo lado exista uma montanha, bastante elevada, que dava um óptimo observatório de todo o quartel.

De seguir reproduz-se o conteúdo de um blog http://petas.blogs.sapo.pt/2007/07/.

Zemba, Angola, 1974

Vista parcial do quartel. Podemos ver à esquerda a capela, ao centro a mess de oficiais e à direita o edifício do comando de Batalhão. As construções, embora toscas, conferiam algum conforto. Pelo menos, pelas fendas entre as tábuas, passava ar suficiente para arrefecer o ambiente…

Zemba, Angola 1974

O quadrado mais claro à direita é o quartel de Zemba. Sede de um Batalhão, neste terreno que antes da guerra fora um terreiro para secar café, estiveram aquartelados durante vários anos cerca de trezentos militares.

A faixa de terreno à direita era a pista de aterragem para aviões ligeiros. Curta e com uma curva junto ao quartel, era um perigo para as aeronaves. O que justificou os vários acidentes que lá ocorreram.

À esquerda da figura pode ver-se a sanzala onde viviam umas dezenas de nativos, quase todos capturados em operações. Uma vez instalados, facilmente esqueciam a dureza e penúria que viviam no mato. Construíam as suas palhotas e dedicavam-se às suas culturas tradicionais: mandioca, feijão e milho. Nas imediações procuravam caça e, na época da colheita do café, deslocavam-se para plantações abandonadas onde, sob a protecção das nossas tropas, colhiam toneladas de bagas.

A fotografia foi tirada no final da época seca (do "cacimbo") e pode ver-se uma queimada. E era aí, nesses terrenos cobertos de cinza fertilizante que preparavam o terreno para ser cultivada.”

Neste quartel, em 1962, foi criado o Centro de Instrução n.º 21destinado à preparação de grupos especiais, especialmente vocacionados para a luta antiguerrilha. In (http://carloscoutinho.terraweb.biz/Angola_Paginas/angola_comandos_PereiraGarcez_CI21.htm)

Neste quartel todas as refeições, oficiais, sargentos e praças eram feitas à moda antiga, isto é, através de lenha, já que não existia nem electricidades nem gás, pelo que era tarefa dos serviços de piquete iram uma a duas vezes por semana à lenha. Como se procedia, muito simples, quem estivesse de serviço de piquete, sargento de dia, mais os soldados do pelotão de reconhecimento e pelotão de minas e armadilhas, ia numa berliet ao mato, a cerca de cinco, dez quilómetros e abatia algumas árvores com machados, já que não existia qualquer equipamento tais como moto-serras para efectuar o trabalho, todo esse esforço era efectuado pelos soldados, como as árvorees eram de grande porte, rapidamente se conseguia carregar a berliet. Das vezes que me calhou lembro-me que embora sendo um trabalho que exigia algum esforço, normalmente era efectuado com alegria, pois era uma forma de descontrair, e depois sempre se viam animais, tais como macacos, papagaios, borboletas, etc.

Neste quartel encontravam-se aquartelados a Companhia de Comandos e Serviços, uma companhia operacional, a 3535, e um pelotão de morteiros.
(continua...)

I - A Viagem (Lisboa/Luanda/Zemba)

A viagem

“Notava-se ao canto dos olhos um vestígio de lágrimas, o pior como não podia deixar de ser eram as esposas e namoradas, cerca das 22 horas chamaram-nos e então foi o ultimo adeus, um último abraço um último beijo, e lá entramos para o ventre daquela ave gigante” (in diário pessoal(*)). Para a grande maioria, senão mesmo para a totalidade de todos os camaradas de armas, este foi o seu baptismo de voo, pois até então, o envio de militares para África era efectuado por via marítima, o nosso Batalhão foi o segundo ou terceiro a utilizar a via aérea.


Assim, pelas 23 horas do dia 3 de Junho de 1972, a Companhia de Comandos e Serviços (CCS), do Batalhão de Caçadores 3880, BC3880, embarcava no Boing 707 da TAP rumo a Angola onde chegou pelas 7h30 do dia seguinte, depois de termos tomado o pequeno almoço a bordo, coisa muito fina para a época.

Uma vez na sala de espera, dirigi-me ao wc para urinar, porem como fui sempre muito curioso e como não nos deixavam chegar à porta de saída para espreitar o exterior, então resolvi dentro do wc, espreitar por uma abertura junto ao tecto pelo que coloquei os pés em cima da sanita esperando desta forma ver não sei bem o quê, mas certamente toda a província por aquela pequena abertura, acontece que a sanita não aguentou e lá vou eu para ao chão, fiando a sanita para um lado e os tubos para o outro e a água a correr, eu como nunca gostei de encrencas, endireitei o melhor possível a sanita, e sai muito sorrateiramente e misturei-me com os restantes camaradas. Por isso, tenham cuidado, se forem ao aeroporto de Luanda, antigo aeroporto Craveiro Lopes, tenham cuidados, pode ainda estar lá uma sanita em mau estado de conservação.

Por volta das 10 horas lá nos meteram nuns veículos de mercadorias, com taipais, e encaminharam-nos para o Grafinil, onde fomos instalados, sendo que as instalações dos oficiais e sargentos eram boas, porem a dos saldados eram autênticas pocilgas. Alem disso, existia uma pequena camada de terra de cor avermelhada, que se nos colava ao corpo, as primeiras impressões de Angola não estavam a ser as melhores.
Após almoço numa das messes de Sargentos, apanhamos a “maxibombo” para a baixa da cidade e cerca das 15h15 já este “artista” estava sentado numa esplanada de Lunada a escrever o seu primeiro aerograma para a família, segundo o qual as primeiras impressões desta nova realidade foram maravilhosas, pois na verdade a cidade não tinha nada a ver com o Grafanil.

Durante essa tarde e noite foi de descoberta da cidade, principalmente da zona da baixa, indo jantar na messe de Sargentos sita na Av. Heróis do Ultramar, onde comi um mísero jantar que nos custou 12$50, sem bebidas incluídas.

Ao terceiro dia estive de Sargento de dia, no quarto fomos todos vacinados contra nem sei o quê, só sei que foi de deitar abaixo, deu-nos um grande abalo.

No dia 8 de Junho de 1972, após a distribuição de armamento, ai pelas 4 horas da manhã embarcamos em camiões com taipais, onde iam todos ao monte, pois eram as malas com as nossa roupas, o armamento e cerca de 10 a 15 pessoas, a minha viatura era a segunda, e a minha grande preocupação era o de estarmos sempre em alerta, não fosse aparecer um “turra”.

Saindo do Grafanil, passamos pelo meio da cidade ainda adormecida, via Caquaco, a minha cabeça estava cheia de perguntas e a dos meus camaradas certamente que também, para onde íamos, onde ficava o nosso quartel, como era ele, o que nos esperava, seriamos atacados pelo caminho? Enfim perguntas sobre as quais ninguém tinha respostas, pois nesses tempos tudo era feito na base de secretismo, só as altas patentes sabiam a resposta mas esses não falavam.

Entramos na estrada que liga Luanda a Caxito e Carmona ao romper do sol, foi um dia cansativo, ai pelas 9 horas começamos a ser escoltados por uma coluna militar, pois a zona de segurança tinha terminado. Fomos tratado como “maçaricos” pelos respectivos elementos que nestas coisas de tropa um dia que seja, há logo uma certa hierarquia, na traça de palavras entre eles e nós a grande preocupação nossa era saber o que nos esperava, enquanto eles tentavam saber noticias do “puto” (era assim que todos os militares tratavam Portugal.

Seguimos pela estrada do Ambrizete, para onde todos pensávamos ir, porem com tristeza nossa, rapidamente deixamos essa estrada e entramos na estrada de Carmona, passamos pela fazenda Tentativa e rapidamente chegamos à ponte do Dange, a seguir ao Piri, deixamos de ter estrada alcatroada e entramos em picada, passamos pela pedra verde na zona dos Dembos, considerada uma das zonas pais perigosas. 

Chegamos a Macondo cerca das 14 horas, depois de nos maravilharmos com a paisagem, autêntica floresta virgem com a macacada saltando de árvore em árvore, neste quartel iria ficar uma companhia operacional do nosso Batalhão.
Passamos o Quincuso e finalmente Santa Eulália que todos nós pensarmos que já se tratava do nosso Quartel, Zemba, porém para grande desilusão nossa ainda não era aqui o nosso quartel até porque Santa Eulália era um grande Quartel e era nada mais nada menos que o Comando Sectorial Norte AM1, pelas 16 horas saímos deste quartel, finalmente com destino a Zemba que distava cerca de 20 kilometros, sendo que a estrada a partir daqui era praticamente intransitável, com locais em que a floresta quase engolia a estrada, locais em que um guerrilheiro poderia deitar a mão a um “maçarico” sem que alguém desse por isso, era uma caminho extremamente perigoso, devo dizer que durante um ano efectuei esta viagem centenas de vezes, sem nunca ter havido qualquer problema, ou ataque.

Pelas 17 horas, um pouco antes do sol se pôr, avistamos as primeiras casa de Zemba, em vez de casas devo dizer barracões, pois todos os edifícios eram construídos em tábua, com telhados de zinco, tipo quartéis americanos. 
A recepção por parte dos velhinhos foi qualquer coisa de extraordinários, eles eram velhos encostados a cajados, eles eram PM’s’. Ainda dentro do camião, o Coimbra, um soldados do meu pelotão, ao descarregar a arma, deu um tiro para o ar, que me passou a centímetros da cabeça, foi a risada geral. Para todos menos para mim, pois até senti a calor do tiro.

Já era noite cerrada quando depois de arranjar cama, e jantar, tivemos um espectáculo organizado pelos velhinhos, onde havia de tudo, anedotas, canções, etc. havendo uma que nos ficou na memória “maçarico, ó maçarico, estamos fartos da picada”, deitei-me pelas 22 horas, pois o dia tinha sido longo. Por volta das 4 ou 5 horas da manhã a CCS do batalhão 3840, que nós vínhamos render, partiu para um novo local, fazenda Tentativa, um verdadeiro centro de férias.

Se para uns era alegria, os velhinhos, para os “maçaricos”, nós, era uma tristeza pois sabíamos que no mínimo iríamos estar ali durante os próximos 12 meses, metidos naquele buraco com o nome de Zemba.
(Continua ...)
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(*) É a partir deste diário pessoal, que me acompanhou desde o primeiro dia de recruta e dos aerogramas enviados para a família que foi possível descrever esta nossa aventura)
Nota: as palavras entre aspas " ", corresponde á mentalidade existente na da époco, não correspondendo à vigente.